Palestra que proferi no III Encontro sobre as Festividades de Nossa Senhora do Cabo Espichel.
"Fui há tempos surpreendido pelo amável convite que o Dr. Hermínio Santos me fez para participar neste encontro como orador. Apesar de ter a consciência que pouco terei a comunicar que a maioria das pessoas não conheça já atrevi-me a aceitá-lo. Talvez tenha sido uma insensatez fazê-lo porque ao contrário dos ilustres palestrantes que nos honraram hoje com a sua presença aqui, e que são profundos conhecedores das matérias que aqui vireram desenvolver, eu pouco mais poderei fazer do que falar de sentires. Penso que terá algum cabimento falar sobre eles porque são muitos e muito fortes os sentimentos que os festejos em honra de Nossa Senhora do Cabo Espichel sempre provocaram e continuam a provocar nas populações das freguesias que a sua imagem visita, uma vez em cada quarto de século. Até aqui, neste encontro falou a voz do saber, eu limitar-me-ei a dar voz ao coração.
Esclarecida que está a qualidade em que aqui me encontro peço que não me olhem como um palestrante mas apenas como uma testemunha, um sintrense anónimo que vive estas festas intensamente desde 1954 data em que as vivi pela primeira vez. Sou um sintrense afeiçoado que se orgulha da história, da cultura e das tradições da sua terra e que conhece e aprecia a genuinidade das suas gentes. As minhas palavras não terão a força da sapiência mas apenas a simplicidade do sentir. Peço desde já que me concedam o favor da vossa benevolència.
Vou debruçar-me um pouco sobre o significado destes festejos para os sintrenses, e falo apenas nos sintrenses porque é em Sintra que estamos, porque é em Sintra que está, neste momento, a imagem peregrina de Nª Srª do Cabo Espichel, porque é de Sintra que gosto de falar e porque é com o povo de Sintra que eu convivo e que conheço, condição indispensável para se entender os seus sentires, porque é de sentimentos e com sentimento que eu hoje aqui venho falar.
Foi em 1460 que a imagem veneranda de Nª Srª do Cabo Espichel visitou pela primeira vez a Freguesia de Santa Maria, como era então designada, uma vez que S. Miguel era uma outra freguesia e a união das duas só aconteceu no último quartel do século XIX. Até hoje foram 21 as vezes que esta freguesia acolheu a imagem da Senhora do Cabo. Vinte e uma vezes, em 550 anos. Talvez esteja aqui, em parte, a explicação para a importância que estes festejos têm para as populações de todas as freguesias onde as festas se realizam de 26 em 26 anos e da emoção, do carinho, do entusiasmo e da veneração com que a imagem de Nossa Senhora do Cabo é acolhida sempre que as visita. Vinte e seis anos é muito tempo. Ausência tão longa justifica toda a expectativa e impaciência que precedem a chegada da imagem peregrina que é recebida sempre com grandes manifestações de Fé, com alegria, com amor, com emoção e também com uma pontinha de saudade.
Saudade? Saudade, sim. Por muito paradoxal que possa parecer há muita saudade entre tanta alegria nas bermas da estrada à passagem do Círio e da imagem da Santa Virgem. Não há olhos que não se humedeçam e poucas são as faces onde não rola uma lágrima mais rebelde. São evidentemente lágrimas de júbilo que a felicidade de receber uma vez mais a visita de Nossa Senhora tornam irreprimíveis, mas são lágrimas temperadas também por uma pontinha de saudade. A saudade daqueles que partiram, daqueles que há um quarto de século atrás estiveram a nosso lado na despedida da imagem, a saudade daquela mão que segurava a nossa enquanto murmurávamos um emocionado adeus à Senhora. Hoje enquanto uma das nossas mãos segura uma outra, mais pequenina e mais frágil, a outra mão está tristemente vazia. Foram 25 anos que passaram. Foi uma geração que partiu. Foi, em contrapartida, uma nova geração que chegou. Eis como se misturam a alegria e a tristeza, a esperança e a saudade, o passado e o futuro. São sentimentos que não são compatíveis entre si e que apenas se misturam em ocasiões muito excepcionais como é o caso destas festas. A mão vazia simboliza festas passadas, foram lindas e persistem ainda na nossa memória mas não passam de mera recordação. Grata, mas apenas recordação. A mãozinha que seguramos agora com desvelo e com ternura simboliza o futuro e a esperança de que estas festas continuarão vivas, que a tradição continuará a ser respeitada e que a Fé se manterá bem acesa. Mantenho ainda bem nítida a memória da primeira vez que assisti à chegada de Nossa Senhora do Cabo a Sintra, já lá vão quase 60 anos, e recordo todas as chegadas e partidas da veneranda imagem a que assisti por 8 vezes, nas três freguesias da nossa vila. Recordo-as a todas com saudade. A tal saudade de que falei.
Não há em Sintra nenhuma outra festa ou qualquer outra manifestação lúdica, cultural ou religiosa que traga às ruas tanta gente como a chegada do Círio de Nossa Senhora do Cabo Espichel. Há séculos que é assim. Sempre foram muitos milhares as pessoas que se apinhavam à beira da estrada e nos passeios para ver passar o cortejo que acompanha a imagem de Nossa Senhora, uma imagem tão pequenina que mal se se consegue descortinar do meio da multidão o que obrigava a que as pessoas se acotovelassem para conseguirem chegar um pouco mais mais à frente de forma a poderem contemplá-la. A imponência do cortejo maravilhava, e maravilha ainda hoje, embora tenha perdido algum do seu antigo esplendor. Eram os timbaleiros e charameleiros trajados à moda do século XVIII, era uma legião de cavaleiros vestidos de gala a montar garbosos corcéis, eram os militares fardados a rigor, os bombeiros com os seus machados e capacetes a reluzirem ao sol, as bandas de música, os coches e charretes artisticamente decorados, os pequenos anjos e anjas a cavalo a cantar as loas à Virgem e no centro das atenções a imagem de Nossa Senhora transportada na berlinda real que o Museu dos Coches cedia para este efeito. Era um desfile grandioso aquele, impossível de esquecer por quem teve a felicidade de alguma vez ter assistido à sua passagem.
Hoje, as festas de Nossa Senhora do Cabo não arrastam já as multidões de outrora. É com alguma mágoa que o afirmo.Tenho, como alguns de nós nesta sala, elementos de comparação suficientes para afirmar que, presentemente, estas festas, embora continuem a mobilizar muita gente e a ser acarinhadas por uma grande parte da população sintrense, perderam algum do esplendor antigo, muita da sumptuosidade de tempos passados e não têm já mesma capacidade de mobilização popular. Mas se o Círio não tem actualmente a imponência de outros tempos, mantém-se intacto o seu significado religioso. O Museu dos Coches pode não ceder já, e não cede, a berlinda real nem as restantes carruagens, a companhia de Lanceiros já não existe, a colaboração da GNR já foi mais aparatosa e nas ruas, apesar de ainda serem muitas, há agora menos pessoas. Por prevenção contra incêndios, numa zona intensamente arborizada como é Sintra, deixou de haver foguetório. O fogo de artifício, é também agora, apenas uma bonita recordação de tempos idos.
São conhecidas as razões que levam ao afastamento e ao decréscimo do entusiamo das populações por este tipo de festas. As solicitações são imensas como todos nós sabemos. A facilidade de deslocação põe-nos actualmente perto de tudo e as tradições não dizem muito às gerações mais novas. Não sou um nostálgico do passado, mas sinto saudades das coisas belas que ele nos proporcionou e que se vão perdendo e tenho saudades também do antigo esplendor destas festas, e do entusiamo que elas provocavam no povo que as começava a viver com impaciência e grande expectativa muito antes de elas se iniciarem.
Como acontece actualmente também no passado as festas de Nossa Senhora do Cabo Espichel começavam a ser preparadas com bastantet antecedência. Tal como agora, também no passado a Câmara Municipal de Sintra se empenhava para que a tradição se cumprisse e as festas se revestissem do brilho, da espectacularidade e da solenidade desejadas. Entre os festeiros, hoje chamamos-lhes Comissão das Festas, estavam as indivualidades mais destacadas da freguesia, lado a lado com fregueses anónimos, gente simples, humilde, ordeira e trabalhadora. A inexistência de barreiras sociais entre os festeiros e o são convívio entre todos era, e é ainda, uma característica destas festas. O lema era: todos unidos para alcançar um objectivo comum: venerar Nossa Senhora, defender a tradição, manter a importância e a imponência das festas, honrar e prestigiar a freguesia e a paróquia. Se lermos as notícias, as crónicas, as reportagens e comentários publicados nos vários jornais da época sobre estas festas e se ouvirmos o testemunho dos mais velhos, facilmente chegaremos a essa conclusão.
Entre os vários “casamentos” improváveis que é possível encontrar nestas festas há um que gostaria de salientar. É a forma como se harmonizam a sumptuosidade com a singeleza. As Loas são um exemplo extraordinário dessa realidade. As quadras singelas de louvor a Nossa Senhora cantadas durante o Círio e escritas normalmente por poetas anónimos e populares, são de uma simplicidade, de uma ternura e tantas vezes de uma ingenuidade encantadoras. A pompa e a singeleza de mãos dadas em nome da Fé.
Existem registos de Loas cantadas em Sintra desde 1804, se não estou em erro. Ficam aqui alguns exemplos:
Em 1804 cantava-se assim:
He! Maria,Virgem pura
Virgem por quem, esmagado
Baquiou no horrendo Inferno
O fatal Rei do pecado.
E em 1830:
Ditosa Cintra, ditosa
Berço de hum povo fiel
Onde se unem os festeiros
Da Virgem e S. Miguel
Em 1908 não diferia muito::
Abençoai este povo
Aos juízes e festeiros
E reservai-lhe Senhora
Gozos santos, verdadeiros.
Em 1933 foi o consagrado escritor e poeta sintrense, Francisco Costa, que escreveu:
Junto aos pés de Deus eterno
Seu sorriso resplandece
É um sol de amor materno
E um luar de humilde prece.
Estão bem patentes nestas quadras toda a simplicidade e encanto das Loas que ao longo dos séculos foram sendo cantadas a Nossa Senhora, pelos anjos personificados na candura das crianças. As Loas eram, e continuam a ser, cantadas ao longo do percurso percorrido pelo Círio, em locais previamente escolhidos, por norma à entrada das diversas freguesias e à chegada à igreja que irá acolher a imagem.
Nas festas de Nossa Senhora do Cabo os festeiros e o pároco sempre souberam conjugar as suas competências e harmonizar o sagrado com o profano. As cerimónias religiosas nestes festejos sempre conviveram bem com os arraiais, as exposições, os concursos de montras, espectáculos, desfiles, iluminações decorativas e fogo de artifício. Sempre houve espaço e tempo para orar, para o divertimento e para a cultura. Há relatos de fiéis nas ruas a pagar promessas durante á passagem do Círio, pessoas a rezar e a cantar de mãos postas, de joelhos em terra e coração apontado ai céu. Crentes e não crentes, lado a lado, uns com Fé outros com respeito mas todos alegres e comovidos. As janelas e varandas engalanavam-se com as melhores e as mais bonitas colchas existentes em cada casa. As montras, a concurso, transformavam-se em verdadeiras obras de arte, extasiavam a multidão e complicavam, e muito, a vida ao júri que tinha a dificil missão de seleccionar os vencedores. Os arcos, os festões, as luzes, o arraial, a música, o folclore, os espectáculos, os desfiles, a missa campal, as procissões e o fogo de vista, como então se dizia. Havia de tudo um pouco. Na igreja havia sermão e cantava-se o Te Deum. Eram assim antigamente as festas de Nossa Senhora do Cabo Espichel. Esplendorosas e comoventes. Ainda há muito desse esplendor antigo nas festas actuais e há ainda muita comoção também. O Círio como já disse perdeu alguma da imponência antiga, já não há sermão na igreja nem se canta também o Te Deum, não há concurso de montras, há menos colchas nas janelas, não há fogo de artifício, mas as iluminações decorativas das ruas têm agora mais brilho, mais luz e mais arte. São mais vistosas. Alguma coisa havia de ter melhorado com o progresso.
Em Setembro próximo a imagem de Nossa Senhora do Cabo Espichel irá partir rumo a Alcabideche para iniciar um novo ciclo. Voltará a Sintra daqui a três anos para S. Pedro de Penaferrim. A Santa Maria e S. Miguel regressará só daqui a 26 anos. O momento da despedida da imagem será como sempre foi um momento particularmente emotivo. Alguns de nós, os mais idosos, sabemos que não a voltaremos a ver nesta freguesia. Para esses será o momento de dizer adeus. Para os mais novos será apenas um, até daqui a 26 anos. As crianças de hoje serão então adultos, os jovens, pessoas de meia idade e estas serão os idosos de então. Digam lá se estas festas provocam ou não, uma torrente de sentimentos. Para terminar, deixo um apelo aos jovens. As festas de Nossa Senhora do Cabo Espichel só terão futuro se vocês quiserem. Nós os mais velhos passamo-vos o testemunho. Aceitem-no e sejam melhores do que nós. Se-lo-ão certamente se quiserem muito, mas pedimo-vos que não deixem morrer a tradição e, principalmente, não deixem esmorecer o amor por Nossa Senhora."
UM CONTO
Um Quadro de Solidão
A tarde estava cinzenta. O céu, plúmbeo, ameaçava chuva. No chão do velho jardim amontoavam-se as folhas das árvores, que o Outono, pacientemente amarelecera, e que o vento se encarregara de derrubar. No ar sentia-se o cheiro húmido característico dos nostálgicos finais de tarde dessa época do ano. Como sinal de vida, apenas a passarada a procurar abrigo nas copas das árvores cada vez mais despidas da folhagem, e o velho jardineiro, meio trôpego, que maquinal e resignadamente, arrastava a vassoura já gasta, empurrando as folhas secas, para pequenos montes, que mais tarde seriam recolhidos e lançados numa qualquer lixeira da cidade.
Um pouco afastado, sentado num banco já carcomido pelo tempo, e semi-destruído pelos maus tratos, um homem observava, com olhar inexpressivo, os movimentos do velho jardineiro, talvez tentando adivinhar quando, também ele já em pleno Outono da sua vida, seria derrubado e varrido do mundo dos vivos e da memória dos seus, se era que estes ainda tinham memória para ele. Tristes pensamentos atravessavam, naquele momento, a cabeça esbranquiçada daquele homem, cujo rosto rasgado pelas rugas e maltratado pelos anos, tornava evidente que o seu passado estava bem longe de ter sido um mar de rosas.
Aquele jardim, agora deserto e pouco menos que abandonado, ( também ele !), estivera desde sempre associado à sua existência. Dele se recorda quando, mal sabendo andar, ensaiava timidamente as primeiras corridas sob o olhar atento, e embevecido, da sua mãe, que naquele mesmo banco se entretinha a tricotar, com um olho no seu rebento e o outro na malha que ia crescendo. Fora ali também que ensaiara, titubeando, alguns dos seus primeiros passos,. Ali sofrera os primeiros trambolhões, ao tentar, sem sucesso, manter direita a pequena bicicleta que lhe fora oferecida pelos avós em nome do Menino Jesus. Também fora ali que calçara pela primeira vez os seus patins, e fora ainda naquele local que fizera alguns dos seus primeiros amigos. Fora aquele o palco de muitas das suas brincadeiras preferidas, ( a apanhada, as escondidas, o berlinde, o pião, e tantas outras, que o passar dos anos foi banindo do dia a dia da petizada e da memória dos mais velhos). Fora ali ainda que saboreara, ansiosa e desajeitadamente, o primeiro beijo de amor. Mais tarde por ali passeou também os filhos, num fechar de um ciclo que correspondeu a uma geração.
Se houvesse alguém que olhasse atentamente aquele homem. teria notado no seu rosto um discreto sorriso de ternura. A ternura... e a imensa saudade com que recordava aqueles que foram os únicos anos felizes da sua vida. Aquele jardim trazia-lhe muitas e gratas recordações do passado. Do tempo em que vivia rodeado por uma família que o acarinhava e amparava. Do tempo em que amara, e fora amado. Amado pelos pais, que estavam sempre presentes quando deles precisava. Pela mulher, que com ele compartilhou uma parte da sua vida, e que, para além de momentos de ternura e felicidade, o brindou ainda com dois rebentos amorosos que quase o fizeram morrer de alegria quando nasceram. Pelos filhos, que vieram completar todo o sentido da sua vida, e para os quais trabalhou árdua, mas determinadamente, para que pudessem crescer sem que nada lhes faltasse.
Aquele velho jardim era então alegre e concorrido. Nele se ouviam os risos, e os gritos da petizada. Nele se fazia sentir o cheiro intenso, e bom, das castanhas assadas. Nele havia vida. Esse velho jardim, tal como ele, já estivera vivo e irradiara alegria e felicidade. Tal como ele, o velho jardim não passava agora de um fantasma do passado. Silencioso, triste, velho e só. As crianças irrequietas e alegres de outrora deram agora lugar a um ou outro velho solitário que desistira já de olhar em frente. Hoje apenas é procurado por quem se contenta, em meditar o passado. Apenas terá alguma utilidade para quem procura um parceiro para a sua solidão e para a sua decadência.
Um pequeno arrepio acordou o velho solitário, dos seus pensamentos e das suas recordações do passado, trazendo-o de volta à dura realidade do presente, e fazendo-o aperceber-se de que uma densa, e fria, camada de nevoeiro se ia progressivamente apoderando do jardim, tornando-o ainda mais cinzento e mais triste, transformando os esguios troncos das arvores e toda a vegetação envolvente, num cenário sombrio e quase fantasmagórico, capaz de insinuar mistérios e inquietar as almas.
O homem, sentindo-se enregelar, aconchegou a gola do casaco para cima do pescoço, levantou-se, e com passos lentos e pesados começou a afastar-se até que a sua frágil silhueta se foi esbatendo, até ser completamente engolida pelo manto de nevoeiro, cada vez mais denso, mais húmido, mais nostálgico e mais inquietante.
Guilherme Duarte